terça-feira, 5 de abril de 2011

Madrugada


[...] o perigo das ruas, o perigo das noites. As baratas passando entre as pernas sujas, os ratos cantarolando sobre o frio, sob as névoas da madrugada. As recordações futuras seriam certamente preenchidas por este íntimo conjunto de cheiros e barulhos com os quais vivia. O papelão a antiquar-se; o papelão úmido envelhecendo; o papelão que por magia durava invernos a fio. E o frio. Lembrar-se-ia também dos seus poucos mas intensos odores. Custava-lhe morar na rua e ser mulher; as dores da menstruação, os cheiros, os dias, recolhida quando não tinha pensos higiênicos; novamente os ratos e as moscas, os ratos lambendo o sangue espesso, escuro; a fonte de água geladíssima onde se lavava as horas tardias, e o velho sorrindo na janela saboreando a cor rosa da água que escorria por entre seus tornozelos; o sangue que estancava durante algumas horas e depois voltava, encarnado, intenso, lambido pelos mesmos ratos de sempre; rato macho, castanho, gordo; rato fêmea, tímido, ternurento. Sentia as pernas mais geladas que o habitual e deixava o sangue escorrer, já não tinha mais paciência para ir me lavar. E o velho sorrindo, deitava para a rua seu último cigarro. Dormia de luzes acesas. Levantava-me, nem sempre, com algum sangue já coagulado na pele, apanhava o restinho de cigarro. Sabor chocolate e o filtro molhado.  O vento roubando-me o prazer de fumar, o fumo tirando algum frio, o frio passando com os dias, os dias opostos à noite, mais minhas, mais íntimas. Naquela noite não sabia que me havia lembrar disso. Mas anos mais tarde lembrar-me-ia da noite em que não estando menstruada, não passei a noite nos caixotes de papelão. Percorri alguns pontos do quarteirão sem me afastar demasiado, algumas esquinas caridosas, mais algumas beatas no chão e nas janelas. À noite o mundo testemunhava-se para algo que observava mas não sabia explicar. O outro lado das pessoas, era isso. Os ratos apareciam sem medo; os gatos, em vez de correr, espaireciam; as estrelas perdiam a timidez. Uma espécie de maravilha. A sequência dos acontecimentos é-me pouco clara, até porque me forcei a não reter nada. Mas as sensações são nítidas. Não era um sítio escuro. Não era um local propício ou tendencioso. Não era verão. Não foi um sonho. Senti-me encurralada pela sua força, não pelos seus braços, não pela sua fraca brutalidade. Senti-me encurralada em mim, não me pude mexer, não pude reagir, agir. Aproximou-se de mim como se viesse pela conversa, atirou-me uma mão, um sorriso, uma bofetada. A outra mão entrou certeira nas coxas, tocou-me de imediato, tocou-me!, tocou-me como se me conhecesse o ponto da imobilidade. Olhou-me nos olhos, não me encostou à parede, não me beijou. Mordeu-me. Mordeu-me a orelha, que sangrou. Mordeu-me o lábio, que sangrou. Mordeu-me o pescoço com força, que sangrou. O seu dedo certeiro mexendo-se dentro de mim, devagar, mantendo-me a imobilidade. Não houve lágrimas. Tocava em mim como se quisesse manter uma relação erótica, estritamente erótica que por engano era também sexual, que por engano era também bruta, que por engano magoava pela invasão corporal, que por engano me humilhava, que por engano me remexia a profundeza das entranhas, que por engano me desintegrava a intimidade. Uma pausa. Como se esperasse que eu tentasse evadir. Mas aquele universo, a força concentrada num dedo e numa vagina, aquele universo absorvera-me já.
Quase não sentia os pés em contato com o chão, quase não sentia a pressão nos lábios menores, quase me sentia suspensa pela incisão do seu dedo. Minusculamente irriqueto. Minusculamente presente, porque era pequeno. Mas tão poderoso naquele momento, tão decisivo no que poderia ter sido um recuo. Mas não. Não teria sido aquele o universo pretendido. Agora éramos vítimas de uma ambiência que eu desconhecia e que ele não soubera evitar. Uma armadilha de sensações. Onde estava minha revolta? Onde estava a minha lágrima? O que ele faria em seguida? O que é fato físico a partir de aqui não registrei. O meu corpo sangrava, ao meu lado via o maço de cigarros desfeito ao chão, ouvia ao longe gemidos, movimentações e respirações frenéticas que soara as milhas, mas tudo passando-se a milímetros de mim. O suor misturando-se; os sexos estranhando-se mas encontrando-se, sim, quem sabe, por engano. O erotismo revoltante na animalesca sexualidade; o mundo acontecendo em câmara lenta enquanto a própria dor se encarregava de atenuar a dor. Senti o cheiro de sangue. Senti os passos afastando-se. Vi-o lamber os dedos, passar os dedos em mim, lambê-los gulosamente. As imagens iriam certamente apagar-se depois que o vi apressado afastar-se de mim, se de fato tivessem apagado. Então acordaria num outro sítio, cuidada por alguém, olhada, momentaneamente, pelo mundo. Mas não. Não. Esta é a recordação mais dolorosa. A mais séria contusão mental. A sensação de que aquilo era verdade, o sangue era encarnado e escorria, a noite e o frio não se iam esvair, e eu tinha que me levantar e caminhar para longe daquilo. Ninguém limparia o sangue, eu não sabia como fazê-lo parar, as dores voltaram, ou pelo menos eu acordava pra elas. Eu tinha que me levantar, se quisesse. Ou deixar-me ali, e esperar, esperar, para me levantar mais tarde. Porque ninguém apareceria, porque ninguém iria perguntar o que foi, ou quem foi, porque esta noite não seria diferente das outras naquilo que é a minha vida, porque isto não tinha sido diferente de ter febre, comer gafanhoto, ou ter chovido. Porque, na verdade, era tudo a mesma coisa. As lágrimas aparecendo devagar. A decisão mental de não querer que aquilo constituísse uma experiência distinta das outras; distinta de levar porrada; distinta de ter dores de estômago por não comer ou comer laranjas podres; distintas da merda do frio que em vez de chatear somente a pele chegava aos ossos, aos órgãos até; distinta de se achar feia; distinta de todos os dias estar farta de não encontrar uma solução, porque às vezes a solução é não pensar na solução; as lágrimas aparecendo devagar num esforço nítido de querer abafar a dor, querer não chorar exatamente ao mesmo tempo que a vagina lateja compulsivamente, o sangue escorre parco e lento mas não para, a angústia com destino previsto: terá de ser abafada, esquecida,  arrumada em um sítio interno. Se ainda houver espaço. As lágrimas compassando os passos, os dedos nus tocando o chão. A contusão interna materializando-se, começando a nascer. Porque aquela experiência não podia ser distinta das outras. Mas era. Como os dias de menstruação eram, como o odor da menstruação era, como a irritação de não ter a higiene pretendida, como a sensação de impotência nas lutas com os homens, como a ternura pelos animais descoberta desde cedo, como a sensação de tristeza quando via crianças passando nos colos das mães. As mães. A mãe. Lembrar-se-ia do barulho do chuvisco batendo nos papelões. O recolhimento do seu corpo, acolhimento do seu corpo. O sangue parando porque ninguém o estancaria. As dores diminuindo porque o corpo precisava de se ocupar de outras dores – o estômago, os ossos, o frio. As lágrimas parando porque ela queria fechar os olhos e adormecer – como uma noite qualquer, adormecer...


Conto retirado do livro: E se amanhã o medo/Ondjaki – Rio de Janeiro: Lingua Geral, 2010 – (Coleção Ponta de Lança) – pág. 109 a 112.     

2 comentários:

  1. Achei intenso... Como vc tá , sumida?

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  2. Ahh eu achei que era seu, fiquei impressionado :)
    Foi uma boa leitura, de qualquer forma.

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