sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Ela arrasta seus olhos pela calçada, anda com a cabeça baixa. É noite e o vento frio sacode as árvores fazendo as gotas acumuladas em suas folhas caírem violentamente, uma chuva fina cobre a noite, ela pode ouvir reclamações da maioria das pessoas que passam por ela, a imagem deles com seus guardas chuvas coloridos contrasta com a noite acinzentada. Ela não reclama, apenas caminha, o sinal está fechado, ela não possui um guarda-chuva e suas roupas estão molhadas e a insistente chuva fina passa a molhar também seus livros que ela aperta forte contra o peito, enquanto aguarda ouvindo fragmentos de vidas alheias, seu ônibus passa diante do seu olhos, a diferença de alguns minutos, o próximo só daqui a uma hora.

Os minutos se arrastam, enquanto vários ônibus passam, a não ser o dela, o ponto se torna cada vez mais vazio, ela senta, talvez devesse se preocupar, mas seus pensamentos estão longe demais, ele cria roteiros para todos esses desconhecidos que mal possuem rosto, que se confundem com a massa, muitos devem estar em casa dormindo, muitos dormem com a cabeça apoiada na janela, alguns viajam em  pé carregando claros sinais de cansaço, será que entre eles há alguém fazendo o mesmo questionamento que ela?

O ponto agora se encontra vazio, ela já nem sabe dizer se seu ônibus passou afinal, ou quantos ônibus passaram por ali, seus olhos apenas continuam a passear por planos incompreensíveis. Ao longe surge então uma figura masculina, ela anda em sua direção, e qual personagem será ele? Ela fixa nesse personagem completamente novo em seu teatro, onde ela o encaixará? Qual a sua história? Os passos os trazem cada vez mais perto aumentando sua curiosidade, nesse momento todo seu mundo está voltado para esse sujeito, ele está em uma proximidade cada vez maior, até que senta ao seu lado, seus grandes olhos castanhos viram pra ele, ela o encara, ele repentinamente parece nervoso, talvez ela devesse temê-lo, afinal ela é uma mulher sozinha com um sujeito desconhecido em um ponto de ônibus localizao em uma rua absolutamente vazia e mal iluminada, mas seu medo foi substituído pela curiosidade, uma curiosidade quase infantil, aquela que faz as crianças levarem as coisas proibidas à boca e ignorar todas as tentativas de proteção paternal.

Ele então puxa um 38, de repente ela entende que ele é seu executor, mas não parece uma figura atroz, ao contrário, parece ter medo dela, treme com a arma na mão e ela apenas continua a encará-lo com uma curiosidade mórbida, está encantada com essa surpresa, estrategicamente colocada em seu palco. Ele grita pedindo o celular, ela não se move, ele puxa bruscamente a bolsa, e nesse momento ela descobre toda a trajetória desse personagem.  Seus olhos expressam então toda a intimidade recém descoberta, ela se encontra maravilhada, ele corre, sem pronunciar mais nenhuma palavra, mas por fim acaba parando, vira e atira. Atira, pois é errado ler as pessoas dessa forma. Ela apenas sente sua pele queimando, sua visão se mancha de vermelho e a noite se torna um pouco mais colorida, a calçada cinza se mistura com o branco de seus livros espalhados pelo chão e o vermelho de seu sangue que escorre, seus olhos continuam abertos, cobrindo o caminho do outro com um castanho avermelhado, e ela continua a olhá-lo. 

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Techo retirado do livro: A garota das laranjas.

Jostein Gaarder

Já contei que toco piano. Não sou um superpianista, mas o pri­meiro movimento da Sonata ao luar, de Beethoven, eu consigo exe­cutar sem errar uma nota. Quando estou sozinho, tocando o primei­ro movimento da Sonata ao luar, às vezes me dá a sensação de estar na Lua com um piano de cauda, enquanto a Lua, o piano e eu descrevemos a órbita da Terra. Imagino que os acordes que toco podem ser ouvidos em todo o sistema solar, e, se não chegam até Plutão, certamente se ouvem em Saturno.

Ultimamente, comecei a praticar o segundo movimento (o allegretto). Não é muito fácil, mas eu o acho lindo quando a minha professora de piano toca para mim. Sempre imagino um monte de bonequinhas mecânicas saltitando para cima e para baixo na escada de um shopping!

O terceiro movimento da Sonata ao luar eu não quero ver nem pintado, não só porque é difícil mas também porque acho um horror ser obrigado a escutá-lo. O primeiro movimento (adagio sostenuto) é bonito e talvez um pouco lúgubre, mas o terceiro (presto agitato) é simplesmente ameaçador. Se eu estivesse numa espaçonave e, ao descer num planeta, desse com um pobre extraterrestre marte­lando ao piano o terceiro movimento da Sonata ao luar, daria o fo­ra no mesmo instante. Em compensação, se o encontrasse executan­do o primeiro movimento, é bem possível que ficasse uns dias por lá, pelo menos me atreveria a falar com ele e ame informar exata­mente sobre a situação do planeta musical no qual aterrissei.

Uma vez eu disse à minha professora de piano que Beethoven tinha em si o céu e o inferno ao mesmo tempo. Ela arregalou os olhos. Disse que eu havia compreendido! E me contou uma coisa interes­sante, Não foi Beethoven quem deu a essa música o título Sonata ao luar. Ele a chamava de Sonata em dó sustenido maior, opus 27, nº. 2, com o apelido Sonata quasi una fantasia. Minha profes­sora de piano acha essa peça dramática demais para se chamar So­nata ao luar. Diz que o compositor húngaro Eram Liszt descrevia o segundo movimento como "uma flor entre dois abismos". Eu di­ria que é um divertido teatro de fantoches entre duas tragédias.

 

Me identifico muito com essa sonata de Beethoven e indico a todos que não a conhece.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Quanto mais sinto o tempo passar, menos tenho pressa pelo futuro.

O engraçado é que viver não é uma opção, assim como morrer não é uma opção, tão manca é nossa liberdade que nos é reservado uma cota específica de tempo de vida, desse tempo se subtrairmos de nossa existência a permanência na primeira infância e a velhice não nos sobra quase nada, isso me lembra Mario Quintana, enquanto remo em direção a vida me apegando a beleza dual do mundo, sou do contra.

Poeminha do contra

Mario Quintana

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

E então? Já não importa mais.