segunda-feira, 6 de junho de 2011

Encanto

Não há como ignorar sua presença ao entrar no quarto, desvia graciosamente dos móveis enquanto caminha nua em minha direção, senta-se então em uma poltrona que havia em seu caminho, nossa distância é mínima, se esticasse o braço poderia tocá-la, ela me olha, puxa um sorriso no canto do lábio, adia minha espera porque quer, ela se sente poderosa ao ver o meu anseio, como uma grande felina que tortura sua vítima com o prazer da espera.

Observa silenciosa cada detalhe ao seu redor, amarra o cabelo, agora posso ver cada curva de seu pescoço, sua orelha, ainda carrega em sua pele alva marcas avermelhadas, sinais do nosso início de noite. Acende um cigarro, traga, me pergunto por onde anda seu pensamento, por quê eles fogem entre os meus dedos? Como a fumaça que ela espalha pelo quarto.

Há pouco tempo mal sabia seu nome, poderia confundi-la com todas as belas pernas que habitam o mundo, e quantas são, mas agora ao olhar as suas, esticadas em minha poltrona verde, aguardo ansioso pelo próximo entrelaçar de corpos, os próximos sussurros, seus próximos desejos.

Agora estou deitado em minha cama, não consigo desviar o olhar de seu corpo, completamente nu, à mostra, mas pouco ele me diz, saberia mais se suas cicatrizes pudessem me contar as suas dores, se cada tatuagem me contasse a suas histórias, se suas pernas me contassem seus trajetos, se seus braços me contassem suas manias, se sua língua involuntariamente abandonasse o meu sexo e me contasse seus segredos, se sua vagina revelasse as suas vontades, aí sim reconheceria todas as suas curvas, me sentiria em cada centímetro de sua pele, então cada cheiro expelido será meu, cada gemido será por mim.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Madrugada


[...] o perigo das ruas, o perigo das noites. As baratas passando entre as pernas sujas, os ratos cantarolando sobre o frio, sob as névoas da madrugada. As recordações futuras seriam certamente preenchidas por este íntimo conjunto de cheiros e barulhos com os quais vivia. O papelão a antiquar-se; o papelão úmido envelhecendo; o papelão que por magia durava invernos a fio. E o frio. Lembrar-se-ia também dos seus poucos mas intensos odores. Custava-lhe morar na rua e ser mulher; as dores da menstruação, os cheiros, os dias, recolhida quando não tinha pensos higiênicos; novamente os ratos e as moscas, os ratos lambendo o sangue espesso, escuro; a fonte de água geladíssima onde se lavava as horas tardias, e o velho sorrindo na janela saboreando a cor rosa da água que escorria por entre seus tornozelos; o sangue que estancava durante algumas horas e depois voltava, encarnado, intenso, lambido pelos mesmos ratos de sempre; rato macho, castanho, gordo; rato fêmea, tímido, ternurento. Sentia as pernas mais geladas que o habitual e deixava o sangue escorrer, já não tinha mais paciência para ir me lavar. E o velho sorrindo, deitava para a rua seu último cigarro. Dormia de luzes acesas. Levantava-me, nem sempre, com algum sangue já coagulado na pele, apanhava o restinho de cigarro. Sabor chocolate e o filtro molhado.  O vento roubando-me o prazer de fumar, o fumo tirando algum frio, o frio passando com os dias, os dias opostos à noite, mais minhas, mais íntimas. Naquela noite não sabia que me havia lembrar disso. Mas anos mais tarde lembrar-me-ia da noite em que não estando menstruada, não passei a noite nos caixotes de papelão. Percorri alguns pontos do quarteirão sem me afastar demasiado, algumas esquinas caridosas, mais algumas beatas no chão e nas janelas. À noite o mundo testemunhava-se para algo que observava mas não sabia explicar. O outro lado das pessoas, era isso. Os ratos apareciam sem medo; os gatos, em vez de correr, espaireciam; as estrelas perdiam a timidez. Uma espécie de maravilha. A sequência dos acontecimentos é-me pouco clara, até porque me forcei a não reter nada. Mas as sensações são nítidas. Não era um sítio escuro. Não era um local propício ou tendencioso. Não era verão. Não foi um sonho. Senti-me encurralada pela sua força, não pelos seus braços, não pela sua fraca brutalidade. Senti-me encurralada em mim, não me pude mexer, não pude reagir, agir. Aproximou-se de mim como se viesse pela conversa, atirou-me uma mão, um sorriso, uma bofetada. A outra mão entrou certeira nas coxas, tocou-me de imediato, tocou-me!, tocou-me como se me conhecesse o ponto da imobilidade. Olhou-me nos olhos, não me encostou à parede, não me beijou. Mordeu-me. Mordeu-me a orelha, que sangrou. Mordeu-me o lábio, que sangrou. Mordeu-me o pescoço com força, que sangrou. O seu dedo certeiro mexendo-se dentro de mim, devagar, mantendo-me a imobilidade. Não houve lágrimas. Tocava em mim como se quisesse manter uma relação erótica, estritamente erótica que por engano era também sexual, que por engano era também bruta, que por engano magoava pela invasão corporal, que por engano me humilhava, que por engano me remexia a profundeza das entranhas, que por engano me desintegrava a intimidade. Uma pausa. Como se esperasse que eu tentasse evadir. Mas aquele universo, a força concentrada num dedo e numa vagina, aquele universo absorvera-me já.
Quase não sentia os pés em contato com o chão, quase não sentia a pressão nos lábios menores, quase me sentia suspensa pela incisão do seu dedo. Minusculamente irriqueto. Minusculamente presente, porque era pequeno. Mas tão poderoso naquele momento, tão decisivo no que poderia ter sido um recuo. Mas não. Não teria sido aquele o universo pretendido. Agora éramos vítimas de uma ambiência que eu desconhecia e que ele não soubera evitar. Uma armadilha de sensações. Onde estava minha revolta? Onde estava a minha lágrima? O que ele faria em seguida? O que é fato físico a partir de aqui não registrei. O meu corpo sangrava, ao meu lado via o maço de cigarros desfeito ao chão, ouvia ao longe gemidos, movimentações e respirações frenéticas que soara as milhas, mas tudo passando-se a milímetros de mim. O suor misturando-se; os sexos estranhando-se mas encontrando-se, sim, quem sabe, por engano. O erotismo revoltante na animalesca sexualidade; o mundo acontecendo em câmara lenta enquanto a própria dor se encarregava de atenuar a dor. Senti o cheiro de sangue. Senti os passos afastando-se. Vi-o lamber os dedos, passar os dedos em mim, lambê-los gulosamente. As imagens iriam certamente apagar-se depois que o vi apressado afastar-se de mim, se de fato tivessem apagado. Então acordaria num outro sítio, cuidada por alguém, olhada, momentaneamente, pelo mundo. Mas não. Não. Esta é a recordação mais dolorosa. A mais séria contusão mental. A sensação de que aquilo era verdade, o sangue era encarnado e escorria, a noite e o frio não se iam esvair, e eu tinha que me levantar e caminhar para longe daquilo. Ninguém limparia o sangue, eu não sabia como fazê-lo parar, as dores voltaram, ou pelo menos eu acordava pra elas. Eu tinha que me levantar, se quisesse. Ou deixar-me ali, e esperar, esperar, para me levantar mais tarde. Porque ninguém apareceria, porque ninguém iria perguntar o que foi, ou quem foi, porque esta noite não seria diferente das outras naquilo que é a minha vida, porque isto não tinha sido diferente de ter febre, comer gafanhoto, ou ter chovido. Porque, na verdade, era tudo a mesma coisa. As lágrimas aparecendo devagar. A decisão mental de não querer que aquilo constituísse uma experiência distinta das outras; distinta de levar porrada; distinta de ter dores de estômago por não comer ou comer laranjas podres; distintas da merda do frio que em vez de chatear somente a pele chegava aos ossos, aos órgãos até; distinta de se achar feia; distinta de todos os dias estar farta de não encontrar uma solução, porque às vezes a solução é não pensar na solução; as lágrimas aparecendo devagar num esforço nítido de querer abafar a dor, querer não chorar exatamente ao mesmo tempo que a vagina lateja compulsivamente, o sangue escorre parco e lento mas não para, a angústia com destino previsto: terá de ser abafada, esquecida,  arrumada em um sítio interno. Se ainda houver espaço. As lágrimas compassando os passos, os dedos nus tocando o chão. A contusão interna materializando-se, começando a nascer. Porque aquela experiência não podia ser distinta das outras. Mas era. Como os dias de menstruação eram, como o odor da menstruação era, como a irritação de não ter a higiene pretendida, como a sensação de impotência nas lutas com os homens, como a ternura pelos animais descoberta desde cedo, como a sensação de tristeza quando via crianças passando nos colos das mães. As mães. A mãe. Lembrar-se-ia do barulho do chuvisco batendo nos papelões. O recolhimento do seu corpo, acolhimento do seu corpo. O sangue parando porque ninguém o estancaria. As dores diminuindo porque o corpo precisava de se ocupar de outras dores – o estômago, os ossos, o frio. As lágrimas parando porque ela queria fechar os olhos e adormecer – como uma noite qualquer, adormecer...


Conto retirado do livro: E se amanhã o medo/Ondjaki – Rio de Janeiro: Lingua Geral, 2010 – (Coleção Ponta de Lança) – pág. 109 a 112.     

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

"Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu. 
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor."¹

Estou preso em meio ao caos de carros e homens, a avenida reclama o tempo todo, só se ouvem buzinas e algumas vozes que hora se alteram proclamando guerra ao seu vizinho. Ao meu redor metal, estou protegido em minha caixa tecnológica, tenho comida, bebida, ar-condicionado, praticamente um segundo útero, mas hoje estou estranhamente impaciente, não consigo ouvir a música que toca na rádio, quero sair, andar com meus próprios pés, correr! Mas é impossível, espero pacientemente a grande fila de homens lata.

Repentinamente meus olhos são atraídos para uma pequena figura que ocupa a rua ao fechar o sinal, uma menina, seu corpo em desenvolvimento a equipara a mais delicada flor, pernas frágeis e expostas, cobertas apenas por uma fina saia que dança ao redor do seu corpo com o vento, mãos pequenas e ágeis, em momento algum deixa um de seus malabares cair. Apesar dos trejeitos infantis, em seus olhos está marcada a determinação e a coragem de quem transforma diariamente essa avenida em palco, e representa seu papel, diante de uma multidão surda, fechada em seu próprio mundo.

Falta pouco para o sinal abrir, ela ligeiramente se esquiva entre os carros, estendendo sua mão nas janelas abertas, sua apresentação é paga com indiferença e, por vezes alguns centavos, ela vem em minha direção possibilitando que eu veja melhor os traços do seu rosto, mas o sinal abre, os carros partem, buzinas voltam a soar, ela corre assustada para a calçada, um carro quase a atinge. Olho pelo retrovisor e vejo seus malabares em uma mão, suas moedas na outra junto ao peito ao qual ela aperta ainda ofegante pelo susto.


"É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."¹

¹ Trecho do poema "A flor e a naúsea" de Carlos Drummond de Andrade

sábado, 29 de janeiro de 2011

À margem de um sonho

O Sol forte castiga os corpos que se movem ao seu redor, mas não impede seu sono, deitada em meio à via pública, seu corpo estava exposto aos olhares que em grande maioria apenas repudiavam sua presença, eles tem pressa, seguem em diversas direções, “correndo atrás de seus sonhos”, pés, pernas, roupas, bolsas, gravatas, pastas, papéis, trabalho, uma massa que se mexe homogênea, indo de encontro a um único ponto.


Se empurasse o papelão que encobre seu rosto, nossa protagonista observaria isso tudo, entretanto, acostumou-se a ser invisível, e assim como os demais não lhe atribuíam importância, ela também passou a ignorá-los, os tratando como fantasmas, seres pertencentes há uma realidade que a mesma não conhecia e nem desejava, havia cansado de olhar sem ser olhada e pelos passos na calçada ela sabia que eram todos iguais.

Ao despertar o movimento se esvai, a noite chega à praça e intensifica o movimento dos seus conhecidos, afetos e desafetos que dividem o mesmo lugar, muitos desconhecidos, rostos desconhecidos surgem todos os dias.

É Natal, época em que ela consegue mais dinheiro e doações, tais “presentes” pouco significam pra ela, se trata de mais uma tentativa das pastas, bolsas e gravatas de livrarem sua consciência, afinal são almas caridosas, a praça está cheia de luzes, ela gosta das luzes.

Ela se levanta, no corpo as marcas da violência, envolto por pedaços de pano desencontrados, cabelos emaranhados, no rosto uma idade além da qual realmente lhe pertence, na boca o gosto do último trago de pinga. O vazio que se inicia no estômago e corrói até a alma, seu único desejo é escapar, escapar dos carros, das fardas, dos outros, dos fantasmas, o perigo se apresenta a cada esquina. Não é que ela não sonhe, mas que sua existência tão complexa, não pode ser captada pelo sujeito que segura o lápis, um dos transeuntes, que nesse momento coloca palavras em sua boca.