sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mártir

Como é estranho olhar no espelho e não reconhecer a si mesmo, tocar seu próprio rosto e perceber que apesar daquela imagem fria lhe representar, pouco diz sobre você. Tocar em um corpo e perceber um estranho, ver que tudo aquilo que acreditava e prezava em si mesmo pode ser facilmente destruído, como um castelo de areia que mesmo com suas fortificações, sua complexa estrutura e todo o tempo gasto para se tornar algo imponente, se dissolve com a primeira onda que o alcança.

Saio de casa destinada a me livrar dessas antigas idéias e sofrimentos, os rostos que me encontram na rua só demonstram o costumeiro estranhamento ao me fitar, pelo caminho vou deixando minhas roupas, argumentos puramente simbólicos que, outrora, afirmavam algo sobre mim.

Ao chegar à praça olhos curiosos percorrem meu corpo exposto, me censurando, inicio então o processo de me despir de mim mesma. Arranco com violência meus cabelos, sentindo a carne de minha cabeça sair junto aos longos fios, antes tão valiosos, a platéia assiste chocada soltando sons de angústia. Passo então a arrancar ferozmente minha pele, sangrando, nesse momento a platéia transforma-se em uma grande alcatéia, mas ao invés de deferir ataques, aguarda que sua vítima agonizar, possibilitando sua tortura individual. Já posso sentir meus dedos tocarem meus ossos, meu rosto já se encontra desfigurado, não sendo possível apontar o que se vê como belo ou feio, apenas repulsivo.

Arranco então meus seios, símbolo do apoio maternal que não tive e que nego a oferecer em todos aqueles que o procura em mim, por ultimo puxo fortemente meu sexo, que durante toda a vida, e até mesmo antes dela se iniciar, definiu minhas predileções e o que deveria ser minha “identidade”, assisto então o resto de minhas carnes caírem, como se esse corpo percebesse que ele já não me pertence ou me corresponde, sou agora apenas um conjunto de ossos, nos olhos do meu público posso enxergar todo o terror que causa a exposição da fragilidade humana, mas agora já não tenho pudor, rótulos ou humanidade e apenas não me lembro dos significados de tais palavras.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sobre o amor I

Uma tarde atravessando a rua encontrei no chão um boneco de pano maltratado, com suas vestes rasgadas, um triste sorriso e em seu peito um vitral vermelho despedaçado em peças tão mínimas que inicialmente não pude perceber seu formato de coração, tentei reanimá-lo e descobrir o que houve com ele, mas nada me respondeu, sem muito pensar decidi levá-lo para minha casa.

O cotidiano nos aproximou e aquela criatura frágil que estava sempre ao meu lado passou a me encantar, começamos a conversar sobre todas as coisas, sentia que possuía um par e queria dividir com ele toda a minha visão do mundo, procurei ensinar o boneco de pano a sentir, apresentei o tato a ele e o prazer que provém desse sentido. Um dia acordei e ao olhá-lo me surpreendi, o boneco de pano se desfazia, seus braços antes recobertos de tecido estava se rasgando aos poucos e já era substituído por uma pele própria humana, e todo o esforço para juntar seus pedaços havia sido recompensado, seu coração voltara a bater.

O tempo passou e os questionamentos aumentaram, fui coberta de dúvidas que iam além de minha capacidade, os momentos que antes eram dedicados a mim se converteram em horas na janela, observando o mundo ao qual inicialmente tinha medo de voltar, não me assustei no dia em que ele resolveu partir, olhei para o espelho e percebi meus lábios costurados em minha face, meus olhos substituídos por botões, minha pele um branco e fino tecido, ele se foi e levou consigo meu corpo, minhas memórias e todo o meu tempo, já não possuía lugar algum para ir, saí vagando pelas ruas a procura de tudo que perdi, meu novo corpo chegou rápido a exaustão, deitei na calçada impressionada com o conforto que aquele lugar contrariamente me fornecia, ali fiquei.