quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Tratado sobre a crueldade II – Tudo que está ao nosso alcance

Unhas bem feitas, cabelo arrumado, uma bela e espaçosa casa, marido, filhos, todos os desejos financeiros atendidos, na mão uma taça de vinho, seu companheiro há muito tempo, pelo menos a única companhia a quem ela costumava solicitar, a combinação álcool mais remédios era sua favorita, passeava distraída entre os móveis de sua sala, analisando cada peça cuidadosamente, talvez trocasse a mobília, mandaria trocar o tapete também, sua tontura permitia que enxergasse um constante vulto branco silencioso passar por ela, era sua empregada, nem ao menos consegue se lembrar do seu rosto, quem dirá de seu nome, a antiga transava com seu marido, essa nem ao menos levanta sua cabeça, sempre silenciosa e servil, S-E-R-V-E-N-T-E, a muito tempo pronunciar algo não lhe trazia tanto prazer, seu rosto se contorce em um sorriso de repugnância e satisfação, joga um gole de vinho no tapete, bebe seu ultimo com uma apreciação antes não denotada, e joga a taça no chão, o barulho atrai a presença solicitada, devidamente uniformizada ainda de cabeça baixa, sua voz pergunta “se machucou senhora?”, mais uma vez o sorriso se forma em seu rosto, “acredito que terá que lavar o tapete”, são suas palavras, se joga preguiçosamente no sofá, enquanto aquela pequena figura, sua empregada, recolhe os cacos de vidro e limpa vigorosamente a mancha vermelha.

O que era uma distração temporária se tornou seu objeto de prazer, gostava de observar o trabalho daquela que organizava seu lar, internamente repetia sem parar S-E-R-V-E-N-T-E, aquela que está lá para servi-la, trocava objetos de lugares e a culpava, sempre arranjava motivos para que ela ficasse até tarde trabalhando, sujava propositalmente as roupas das crianças, gostava especialmente do semblante constante de sua vitima, nenhuma indignação, nenhum comentário rude de volta, ela apenas a ouvia e lhe demonstrava olhares de desespero diante as acusações de sua senhora. Com o tempo esses pequenos atos se tornaram insuficientes para sua satisfação, assim como uma droga, seu corpo exigia mais daquela sensação, passou então a aumentar seu consumo, manchava as roupas que estava na máquina de lavar e a acusava duramente, após as acusações de displicência e incapacidade viu a jovem se desmanchar em prantos, gargalhava por dentro em um ápice de prazer, passou a mão em sua cabeça para consolar o ser choroso em sua frente, era uma confirmação, ela era a justiça, a única que a outra conheceria e a que lhe aplicaria as devidas punições, detinha esse poder sobre sua serva.

Passava a noite pensando nos castigos que aplicaria, nas situações que criaria a fim de humilhá-la conforme a sua vontade, imaginava sua empregada nos eventos mais sórdidos e se deliciava com essas visões, pensou diversas vezes em agressões físicas, se sentia como um carrasco punindo sem se importar com a procedência dos crimes ou a possível inocência de sua vitima, uma tarde entupiu o vaso sanitário, defecou logo em seguida imaginando as reações que encontraria a seguir, a chamou e notificou do problema no banheiro, parou na porta para observar o procedimento, a empregada então se negou, pediu que chamasse um encanador, argumentando que esse não era seu trabalho, jamais ouvira uma afronta pior, sua ira por tal rebeldia foi tão grande que agarrou a jovem moça pelos cabelos, a mesma somente se debateu enquanto ela a atingia no rosto, após a agressão, pediu que ela saísse de sua frente e fosse se recompor na cozinha, surpreendeu-se após a volta da mesma em 20 minutos avisando que iria partir, assistiu imóvel a saída de sua serva pela porta.

Posteriormente comentou muito abalada com o marido sobre a forma absurda que a empregada havia partido, por dentro ela se corroia, questionando a si mesma como passaria seus dias, mas seu companheiro lhe mostrara imediatamente novas possibilidades, dizendo: “Não se preocupe, rapidamente encontraremos outra, essas meninas são produzidas em série”, ela logo teria um outro brinquedo, poderia dormir tranquilamente essa noite.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sobre a crueldade humana - O prazer pela destruição das coisas belas.

Ele senta no chão em uma parte gramada de seu quintal, arranca as folhas nas cercas e despedaça delicadas flores amarelas, sua mãe passou meses plantando-as, esperando que elas brotassem, mas para essa figura infantil é muito fácil destruir, sem muito remorso ele continua sua atividade, seu sorriso diante a destruição, desfaz a idéia de fragilidade que poderíamos ter a primeira vista, surge então o primeiro grito, sua mãe exclama seu nome, anda até sua direção e lhe dá palmadinhas nas mãos, enquanto repete: “Não, não, não”.

Após um rápido choro, ele anda até outra parte, encontra no chão uma borboleta que se debate com as patas viradas pra cima, difícil imaginar como ela caiu dessa forma, entretanto, é perceptível que ela ainda vive, sua luta pela sobrevivência é visível e seria comovente para qualquer um de nós (ou não?), o ser cruel se aproxima, a segura por uma pata que imediatamente se desfaz, usa de força sem medida, pausa um momento para avaliar uma forma de segurá-la sem que se despedace imediatamente, isso impediria sua diversão, após tentativas que mais parecem uma tortura consegue, não evita ferir ser tão belo, ao contrário, seus planos são exatamente esses, sua admiração pelas cores não o impede de dilacerar quem as possui, arranca então a primeira asa, a vira em direção do sol e observa os detalhes que aparecem na presença da luz, o que para ele é apenas curioso, algo a ser admirado e que ele necessita possuir é para nossa borboleta fruto de uma série de transformações, que custaram a ela grande parte de seu tempo de vida.

Nesse momento ele percebe, descobre o prazer que advém da destruição das coisas belas, se sente como o agressor que encurralou sua vitima e aproveitando sua fragilidade retira essa beleza do seu corpo, admirar não é o suficiente. A vitima continua a se debater em suas mãos, mesmo sabendo que sua luta está perdida, jamais voaria novamente, chora por todas as tentativas de sobrevivência inúteis e desperdiçadas pela chegada de algo muito superior a ela, seu agressor continua o mesmo processo de dissecação da frágil criatura que para ele nem possui nome, sua mãe mais uma vez o observa, dessa vez sem nenhuma represália, “Ele está brincando com uma borboleta qualquer”. Após ser desmembrada nossa borboleta é imediatamente descartada no meio do jardim, seus encantos estão esgotados, posteriormente seu cadáver será pisoteado por um dos humanos, consumido pelos demais insetos na grama, ou somente esquecido e escondido entre a terra.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Quando a vi pela primeira vez ela vestia preto, era a menina de preto, sentada em um banco, sempre lendo algo, sempre sozinha, passei então a observá-la todos os dias, percebi que sempre usava as roupas da mesma cor, suas unhas também estavam sempre pintadas de preto, gostava de notar quando estavam descascando, era a única modificação visível naquele ser que pra mim se tornou um mistério a ser desvendado.

Imaginava o que ela ouvia, onde morava, o motivo de sua solidão, lia os mesmos títulos que ela e passei a adorá-la com paixão, no rosto antes desconhecido passei a enxergar possibilidades de identificação,lhe atribuí uma personalidade doce como sua voz (a qual jamais ouvi), vicíos de linguagem, pequenas manias e tiques, com o passar do tempo, ela se tornava cada vez mais complexa e completa. 

Um dia encontrei minha menina de preto rodeada de pessoas, sorrindo. Suas unhas já não descacavam o esmalte que durante muito tempo me indicava seu humor, ele havia sido substituído por um outro qualquer, seus mistérios haviam sido revelados, ela se tornara uma figura normal, nunca soube o motivo da mudança, provavelmente jamais saberei, na realidade nunca a conheci, descobri que ela era apenas uma idéia.